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Habitar as rupturas do tempo

Por Carolina Delboni

15.12.20



Foi uma rasteira este ano. Um atropelo do tempo aos planos, ideias, projetos. Um ano que quase desisti do meu caderninho, das coisas que escrevo por ali. Dos pensamentos deliciosos que surgem e afloram pra vida. Será que a gente desistiu de muita coisa? Ainda que a gente possa ter a pandemia como a grande culpada, fico a pensar o que é nosso. O que é responsabilidade nossa.


Me lembrei de um ensaio lindíssimo da escritora Natalia Ginzburg, no livro As Pequenas Virtudes, em que conta do exílio com a família, em Abruzzo, interior da Itália. Um retiro forçado pelo regime fascista em que ela trata das saudades e das pequenas grandes mudanças na vida – ou no tempo que a rege.


Em Inverno em Abruzzo ela escreve: “a saudade aumentava dia-a-dia em nós. Certas vezes era até prazerosa, como uma companhia terna e levemente inebriante. Chegavam cartas da nossa cidade com notícias de casamento e de mortes das quais erámos excluídos. Às vezes a saudade era aguda e amarga, esse tornava ódio. Mas era um ódio que mantínhamos oculto, reconhecendo que era injusto...Há certa uniformidade monótona no destino dos homens. Os sonhos nunca se realizam, e assim que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias maiores de nossa vida estão fora da realidade. Nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós. Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperança e nostalgia”.


E me lembrei do verbo “esperançar” que Paulo Freire inventou e empregou tão bem e que minha querida amiga Juliana Pinheiro Mota o rememorou outro dia. Fiquei pensando nas rupturas do tempo e de como a gente é responsável por reconstruí-lo. Por esperançar. Tá aí a intersecção entre o exílio poético de Ginzburg, a pandemia que a gente vive e a ruptura dos tempos. É a nossa possibilidade de esperançar a vida.


Diz que a humanidade só passou por algo desta magnitude na Segunda Guerra Mundial. Diz que em termos de chacoalhada global, desde então, nada teve igual. A pandemia mudou as grandes e pequenas coisas no mundo todo. Mudou nossos apertos de mão e nossos abraços. Mudou o jeito que a gente sorri quando encontra outro alguém. É o que dizem. Dizem tantas coisas, não é?


Viver um fato histórico não é fácil. Viver as rupturas deste tempo menos ainda. Cecília Meireles escreveu que o tempo seca o amor, seca as palavras. Tempo seca a saudade também. Seca as lembranças e as lágrimas. Mas deixa algum retrato. E cá estamos a retratar o tempo em tantos novos formatos e isso pode ser um jeito da gente praticar o “esperançar”. É verbo e verbo pressupõe ação.


Afinal, “de que são feitos os dias?”, pergunta Cecilia Meireles numa poesia. “De pequenos desejos, vagarosas saudades, silenciosas lembranças”. Será este um “esperançar”? Natalia Ginzburg recorre a tudo isso. Talvez como forma de manter o tempo vivo – ou manter-se viva.


O fim do inverno se aproxima no ensaio de Ginzburg e com ele a possibilidade do fim do exílio. Só que poucos meses depois, seu marido morre numa prisão em Roma. “Na época eu tinha fé num futuro fácil e feliz, aquele era o tempo melhor da minha vida, e só agora, que me escapou para sempre, só agora eu sei”.


E me volta a pergunta: será que a gente desistiu de muita coisa? O que escapa da gente e o que a gente deixa escapar? Do tempo, aprendemos que não temos controle. Que controle é uma coisa maluca que o ser humano inventou pra tentar por ordem na vida.


A gente insiste em viver a vida em linha reta. Na percepção linear do tempo como se cada minuto fosse a exata sequência do anterior. Será? Einstein disse que tempo e espaço são curvos. O pintor espanhol Miró escolheu desenhar sua linha do tempo toda, aparentemente, desconexa. Como uma teia cheia de pontos em intersecções. Nunca uma linha reta como aquelas que a gente vê em aulas de história.


Foi uma rasteira este ano. Um atropelo do tempo ao próprio tempo. Um deles escapou da linha que o mantinha reto e invadiu o que andava solto, procurando lugar pra fazer morada. E cá estamos a habitar as rupturas do tempo. Aprendendo a tecer fio.


Foram nestes passeios que aprendi a ver o mundo grande. Talvez precise agora de um caderninho sem linhas pautadas, sem linhas retas. Pra aprender a lidar com os desejos que surgem da folha em branco. Do tempo que a gente não controla. Será que a gente desistiu de muita coisa?

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