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Entra, repara na bagunça

Por Carolina Delboni

02.03.21





Outro dia uma amiga falou, “adoro aquela tua frase: entra, repara na bagunça”. Entra, repara. Tá uma bagunça danada. Chega a me dar enxaqueca tamanho o rebuliço interno. Ando coletando pensamentos numa estrada sem fim. Vem, entra. Repara na bagunça.


Somos um povo que tem mania de se explicar quando a visita entra em casa. “Desculpa a bagunça, é que essa semana foi uma loucura e acabei não conseguindo organizar as coisas”. Ou “me desculpa pela bagunça, mas chegaram umas caixas do depósito e ainda não tivemos tempo de arrumar. Trabalho, escola, filhos... tá uma bagunça”. Não se preocupe não. Todo mundo tem sua bagunça particular.


O que a gente não precisava era se desculpar por ela. Desculpa contém culpa, já reparou? Olhar a fundo as palavras é um exercício de busca de exatidão. Tenho esse costume de investigá-las. Talvez porque eu tenha a escrita como profissão. E soma-se a isto o ofício de jornalista. A pessoa aqui adora uma investigação.


Já caí na armadilha de investigar outras coisas. Lembrei de umas determinadas férias, ainda meio criança, em que decidi que seria investigadora. Detetive, pra ser exata. Dei conta de arrumar um caderno - pequeno, de modo que não fosse visto - e tratei de começar a espreitar as pessoas. No caso, transformei quase todos da minha própria família em suspeitos da minha própria imaginação. Procurava um crime que nunca aconteceu. Procurava um suspeito que nunca existiu. Eram férias. Só existiam dias vazios e livres na minha cabeça. O que já não é mais possível de se dizer uns 30 e poucos anos depois.


Os dias andam cheios e a cabeça está com os gigas do icloud saturados. Preciso arrumar a bagunça pra liberar espaço na nuvem. Nuvem, deveríamos dispor de mais tempo para olhar o céu. A mesma amiga que falou da minha frase tem uma que eu adoro: “certamente olharemos mais para o céu”. Sexta-feira deveria existir pra que a gente pudesse sentar no quintal, esticar as pernas na grama e olhar o céu. Há quanto tempo a gente não se deita e observa o céu coalhado de nuvens?


Ainda gosto de encontrar desenhos. É um lastro de infância. Talvez daquela mesma em que eu procurava suspeitos às minhas investigações imaginárias. Era gostoso. Era leve. A bagunça se resumia ao chão da casa da minha avó repleto de retalhos, linhas e agulhas. Com ela aprendi a juntar duas partes de um tecido e costurar um vestido de alcinhas. Aprendi a colocar minhas mãos bem firmes rente a agulha da máquina de overlock e chulear o vestido da boneca. Precisava manter o olhar firme.


Gostava de sentir a vibração da máquina nas mãos. Gostava do som alto que fazia e da manobra que acontecia na costura. Minha avó era filha de imigrantes espanhóis. Vieram para o Brasil trabalhar nas fazendas de cafés. Morou uma vida onde a terra é vermelha e por uma lacuna do tempo, viveu na capital. Foi quando comprou a máquina de overlockde um sujeito no Brás, onde meu vô, imigrante italiano, tinha raízes. “Todinha de ferro. Já era uma relíquia. Seu avô comprou em 68”.


Recentemente, sonhei com a máquina. No mesmo dia, minha tia me escreve dizendo que resolveu mandar a máquina pra minha casa. Achava que tinha que ser minha. Sempre quis que fosse minha. Desde que meus pés alcançaram o pedal. E em tempos de tanta coisa se desfazendo, achei bonito poder costurar outras histórias.

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